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“Você tem que saber que o ódio que encara como mulher é muito pior que como homem, cis ou trans. É um mundo diferente”, me disse Samuel East, um trabalhador sexual transgênero de Toronto, no Canadá. Aos vinte e poucos anos, East se identifica como homem não faz muito tempo. Ele começou a transição médica com testosterona há alguns meses. Sua vida como trabalhador sexual, porém, é longa.
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Estatísticas precisas sobre trabalhadores sexuais trans no Canadá são difíceis de achar, mas não é incomum encontrar indivíduos trans envolvidos em trabalho sexual, sejam eles independentes ou parte de agências de acompanhantes. Pesquisas mostram que trabalhadores sexuais trans enfrentam mais intolerância e violência que os outros trabalhadores da indústria e, como todas as minorias nesse campo, pessoas trans estão mais sujeitas a fetichização do que trabalhadores brancos, héteros e cis.
Enquanto mulheres trans ganharam atenção do mainstream nos últimos anos por meio de celebridades como Caitlyn Jenner e Laverne Cox, homens trans ainda estão fora do radar em muitos aspectos. Como East me disse, a maioria das pessoas nem sabe o que significa ser um homem trans. Esse fato é aparente no trabalho sexual. East é um dos poucos homens trans do ramo em Toronto.
Para ter uma ideia melhor de como é a realidade dele, a VICE o encontrou para bater um papo.
Alguns nomes, locais e incidentes desta matéria foram alterados para proteger a identidade das fontes envolvidas.
VICE: Como você se tornou acompanhante?
Samuel East: Comecei bem jovem. Cresci em Covenant House [um abrigo juvenil de Toronto], mas fui expulso por namorar outras garotas. Naquela época, eu era uma pessoa de 18 anos sem um centavo no bolso – metade do meu cabelo era longo e a outra metade tinha um dread. Eu tinha um visual bem crust punk. Fazíamos essa coisa de ir para uma igreja diferente todos os dias da semana para conseguir comida e coisas assim.
E foi aí que você entrou para o trabalho sexual?
Sim. Na época, comecei como sugar baby, o que era uma merda. [Os clientes] tiram muito mais vantagem de você do que deveriam. É o pior tipo de trabalho sexual porque você basicamente devota 24 horas do seu dia para alguém por mil dólares por mês. Depois disso fazia sentido passar para acompanhante, quando eu me apresentava como mulher. Me tornei ativo nos fóruns de classificação cerca de três anos atrás. Isso era com o meu antigo nome de guerra. As coisas que as pessoas dizem nesses fóruns são nojentas.
Você trabalhou em alguma agência menos organizada e mais escusa no começo?
Os primeiros trabalhos acabaram me impedindo de fazer a transição. Essas agências de baixo nível ficam na fronteira entre prostituição e tráfico de pessoas. Ao pensar em tráfico, você geralmente imagina pessoas sequestradas e levadas para um quarto onde são obrigadas a trabalhar, mas isso geralmente não é o caso. Você pode dar seu consentimento para estar ali, mas eles passam a mandar cliente atrás de cliente sem te avisar. Você acaba atendendo uns oito caras por dia, um depois do outro.
Às vezes eu recebia uma mensagem logo depois que o cliente saía. “Ei, você tem outro cliente em dez minutos.” Tipo, OK, como vou ter tempo suficiente para tomar banho, trocar os lençóis e me preparar? Era horrível. Seu corpo cansa e você começa a se machucar depois de horas fazendo isso. Machuquei meu quadril por fazer cowgirl por oito horas por dia. Em compensação, tenho umas coxas de amazona agora.
O que aconteceu com a primeira agência em que você esteve?
Ela fechou. Foi quando a lei mudou e você não podia mais divulgar abertamente seus serviços. Esse lugar oferecia um “cardápio” com todas as opções para o cliente. Era uma coisa muito ofensiva. Ainda recebo mensagens dizendo “ei, qual o seu cardápio?” Tipo, eu não sou uma porra de restaurante. Quem te ensinou a falar assim com as pessoas? Isso é algo que posso fazer como trabalhador sexual homem – ser mais insolente com as pessoas. É muito legal, posso realmente extravasar minha raiva de vez em quando.
Para onde você foi depois?
Bom, não fui para um lugar melhor. Na minha primeira agência, se alguém vinha e te batia, eles não faziam nada. No lugar seguinte isso era ainda pior. [Minha chefe] me levou para Alberta para trabalhar, e eu fazia 1.500 dólares por dia. Tipo, era um sonho, mas era difícil. Um cliente me bateu até eu cair um dia. Fiquei com hematomas pelo corpo todo, e ela estava na sala ao lado e não fez nada. Isso foi um caso extremo – ela era uma verdadeira psicopata. Mas muitas pessoas no comando desses lugares são caras que não dão a mínima ou não entendem nada disso.
Esses lugares eram como minibordéis?
Sim, era um prédio de apartamentos. Se você é um trabalhador sexual entrando num prédio desses, você fica imaginando: “Quantas prostitutas estão atrás dessas paredes agora?” Elas estão por todos os lados. Conheço alguns desses prédios na cidade e sei onde as agências ficam.
Quando você decidiu fazer a transição?
Quando eu trabalhava para a agência anterior, chegou um ponto em que decidi que não podia mais fazer aquilo. Na época, minha consulta com o endocrinologista estava chegando e eu não ia perder isso, então surtei. Apareci no trabalho com os seios amarrados, meu packer, tudo, e as merdas que eles me disseram… Foi horrível, foi humilhante. Eu sabia que ia perder clientes porque o apelo de homens trans no trabalho sexual não é tão grande. A renascença dos t-boys ainda não chegou. Apesar disso, os clientes começaram a agendar mais tempo comigo porque há poucos de nós na cidade.
Como as coisas mudaram desde a transição?
As coisas melhoraram muito. Não tenho feito tanta divulgação. Você não vai atrás da sua clientela – caras héteros – como homem trans. Se você entrar nos fóruns de classificação e digitar “tranny”, você lê as coisas mais nojentas. A maioria das pessoas não aceita os trans. Eles preferem mulheres trans a homens trans. Lembro de ler o classificado em que uma mulher fez a cirurgia, e ela começou a se divulgar como mulher – tirando totalmente a parte trans da equação. Isso porque quando os caras procuram por uma mulher trans, eles querem um pênis junto. Eles acabaram com ela. Escreveram coisas como “Ele não pode fazer isso! Ele é nojento!”.
Você enfrenta muita transfobia hoje?
Sim, quer dizer, o lugar em que trabalho agora é muito trans-friendly, mas perdi meus clientes regulares que costumavam me seguir religiosamente. Meio que saí disso sutilmente. Recebo mensagens de pessoas que eu conhecia antes dizendo coisas como: “Se seus clientes souberem que você é trans, eles vão ficar putos”. Ainda não estou tão avançado na transição. Meio que pareço a mesma pessoa. Tenho clientes que me pedem para usar lingerie, o que não faz sentido porque o mercado para acompanhantes mulheres está saturado. Muita gente acha que sou uma mulher trans e ficam confusos. Ouço direto “qual o tamanho do seu pau?” Tipo, ainda não tenho um. Recebi uma ligação às oito da manhã outro dia, de um cara perguntando se eu era menino ou menina e que ficava se referindo a mim no feminino. Tipo, eu não ligo se você se confunde, mas eu deixo isso claro. Eu não tinha tomado meu café ainda e fui meio grosso.
Você parece lidar com isso muito bem. Como você mantém o profissionalismo com pessoas que te desrespeitam?
Estou acostumado agora. Minha percepção do que é escrotice caiu muito – a barra está no chão agora. Toda minha carreira me preparou para esse momento. As pessoas podem ser muito degradantes. Já vi classificações para uma garota que tinha só 18 anos, e era uma coisa totalmente escrota: “Ela faz de tudo! Você pode usar ela totalmente”. Isso me fez lembrar de quando eu era mais jovem. Ver essas coisas ao seu redor o tempo todo te dessensibiliza. Por isso [eu domino homens agora] é uma libertação emocional. Tipo, OK, você pode ser um cuzão, mas vou te bater por uma hora e você vai me pagar por isso porque você é um otário. Isso te caleja de um jeito pesado.
Baseado nas suas experiências, como ser um homem trans é diferente de ser uma mulher trans nesse negócio?
[Mulheres trans] são expostas a misoginia trans todos os dias – homens trans recebem mais os comentários tipo “sapatão”, e daí, de repente, você é um homem. Homens trans passam despercebidos quase 100% das vezes. Testosterona é um hormônio bastante permanente. O que isso faz com você não pode ser revertido. Muitas mulheres trans precisam passar por eletrólise, cirurgias para afinar a voz… Várias coisas. Elas são julgadas e ouvem muitos comentários desagradáveis enquanto isso.
Muita gente nem sabe o que é um homem trans. A ideia de uma mulher se tornar homem é totalmente desconhecida para a maioria. No mainstream, quase não há esse tipo de representação na mídia. Mas você meio que fica livre depois que faz a transição. Você não ouve o mesmo tipo de merda que uma mulher. Você pode finalmente respirar.
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Tradução: Marina Schnoor
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